segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Prefácio João Barreto

Prefácio

As demências são hoje em dia uma realidade directa ou indirectamente experimentada pela quase totalidade dos portugueses. Rara é a família onde não há pelo menos um caso. E a perspectiva para os próximos anos não é encorajadora.

Na realidade, dos cerca de milhão e meio de idosos que fazem parte da nossa população, mais de setenta mil estão afectados por um processo demencial, na sua maior parte doença de Alzheimer ou quadro afim. E mais de doze mil casos novos surgem todos os anos. Estes números continuarão a crescer, nos próximos anos, principalmente devido ao prolongamento da duração da vida em resultado dos progressos sanitários e do melhor controlo dos flagelos tradicionais. Trata-se de uma consequência paradoxal do progresso nos cuidados de saúde, consequência esta que para muitos parece inesperada, e para a qual a sociedade não tomou as devidas precauções.

A idade avançada traz consigo maior fragilidade e por consequência mais doença, tanto física como psíquica. E, realmente a sociedade não parece preparada para dar uma resposta adequada aos inúmeros problemas que surgem nos mais variados sectores, tanto no domínio sanitário como económico-social, que daí resultam. Por outro lado, ao nível das experiências individuais, a qualidade de vida de muitas pessoas está directamente posta em causa, seja por sofrerem elas mesmas das doenças devidas à idade, seja por terem que lidar com situações familiares muito difíceis provocadas pela existência no seu seio de doentes com elevado grau de dependência e portadores de patologia crónica, principalmente quando esta é de natureza psíquica.

O aparecimento de um quadro de demência está a ter, hoje e cada vez mais, um impacte severo no sistema familiar. As primeiras manifestações, os esquecimentos e falhas, causam alarme, sobretudo se já houve outros casos anteriormente: será que se trata de Alzheimer? Já não estamos na época em que as pessoas sorriam com bonomia ante os dislates dos anciãos. Todos sabem o que isso pode significar, o que virá depois. Daí que ao princípio se esboce uma dúvida: custa a acreditar, talvez não seja tanto assim… Surgem explicações plausíveis para os lapsos: anda deprimido, teve um desgosto, fecha-se em si mesmo… Mas a dura realidade acaba por se impor, e com ela a percepção de se estar desamparado ante uma situação de enormes e imprevistas exigências.

A demência difere das outras situações de dependência pelo facto de a própria comunicação com o doente se ir perdendo pouco a pouco, ao princípio a nível verbal, e mais tarde até afectivamente. As reacções do enfermo causam perplexidade, não se entendem, parece que ele se vai tornando noutra pessoa, mais torpe e mais obstinada. Não é raro que se comece a repreender o doente, como se ele fizesse de propósito. Quando surgem fases de agitação elas custam a aceitar, e aflora nos parentes uma agressividade que julgavam não ser possível. Sentimentos antigos vêm ao de cima, não tanto de carinho quanto de raiva e ressentimento, e com eles uma culpabilidade que divide cada um contra si próprio e contra os outros parentes.

Se a sobrecarga de trabalho não pode ser partilhada com outros familiares, o cuidador vai-se afastando progressivamente do seu mundo e tende a viver uma existência de rotinas em que se esforça por não pensar, alternadas por momentos de esgotamento ou mesmo desespero. Daí que não é raro encontramos verdadeiros quadros de depressão grave entre prestadores de cuidados a doentes com Alzheimer.

Estes prestadores de cuidados informais, uma categoria de pessoas que ainda há poucos anos era relativamente rara, sofrem pois de uma forma de stresse muito especial, caracterizada pelo esforço físico, a tensão permanente, a falta de tempo para dormir e cuidar de si, e o isolamento progressivo do seu meio social. Muitos trabalhos têm posto em relevo a precariedade da sua condição de saúde física e psíquica, e a elevada morbilidade de que padecem, comparativamente com outros indivíduos não sujeitos a tal sobrecarga.

Com o passar do tempo, essa situação pode acabar por se reflectir sobre os próprios dementes, eventualmente tratados com menos solicitude, serem vítima de negligência ou de irritabilidade ou até receberem maus-tratos, situação que não é propriamente uma raridade.

Mas mesmo não sendo a rejeição familiar, felizmente, uma atitude generalizada, ao menos por enquanto, o facto é que as famílias continuam a debater-se com falta de apoio técnico e social para desempenharem o seu papel no cuidar dos enfermos em situação de demência.

O presente livro chama precisamente a atenção para esse facto e aponta direcções a tomar na resposta ao problema. Partindo do princípio de que o doente deverá permanecer no seu domicílio tanto tempo quanto seja possível, para o poupar ao sofrimento de uma institucionalização precoce, constata que isso acarreta a necessidade de receber cuidados por parte de familiares. Procura então avaliar as dificuldades com que esses familiares se deparam no seu esforço de cuidar, bem como caracterizar as maneiras ou estratégias como eles tentam resolver os seus problemas, as chamadas estratégias de coping, que também se poderão designar por mecanismos de superação. E tenta identificar as satisfações que eles poderão eventualmente retirar da sua actividade e que poderão de alguma maneira compensá-los no seu esforço.

O autor distingue, e põe em confronto, as situações de dependência provocada por doença física e aquelas que se devem a uma situação de demência. Procura assim identificar o que é específico da situação de cuidador de doente de Alzheimer, comparado com outras enfermidades crónicas. Os seus resultados põem em evidência que a repercussão negativa em termos de maior sobrecarga global, menos satisfação, e mais perturbações de saúde, está claramente associada com o facto de ter a seu cargo um enfermo de Alzheimer. Dito por outras palavras, cuidar de um demente é mais pesado, afecta mais a qualidade de vida e põe mais em risco a saúde do que cuidar de outro tipo de doente crónico.

Daqui parte o autor para as suas propostas de intervenção em apoio dos cuidadores, que assentam na necessidade de se proceder sistematicamente ao diagnóstico e avaliação das suas diferentes situações pessoais. Assim, no processo de diagnóstico das situações demenciais, ao lado da avaliação clínica e funcional dos doentes de Alzheimer, deverá proceder-se ainda à avaliação dos cuidadores, e nesse estudo o enfermeiro deve ter um papel importante e específico. Dessa maneira se poderá prestar-lhes a modalidade de auxílio de que eles na sua grande maioria tanto carecem, e que, mostra este estudo, estão ainda longe de receber.

É urgente, portanto, cuidar dos cuidadores. Pode parecer uma proposta ousada, mas é sem dúvida necessária, como este belo livro tão bem procura demonstrar. E não só eles, os que dão todo o esforço e boa parte da vida a amparar os dementes, como estes mesmos enfermos, terão uma vida com mais qualidade, e toda a sociedade ganhará com isso.

João Barreto

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